Entendo que aquilo
que hoje somos, enquanto civilização, devemo-lo, numa primeira fase, mais
antiga, à filosofia grega, ao direito romano e à moral judaico-cristã e, numa
segunda fase, mais recente, essencialmente às conquistas alcançadas com o
iluminismo (racionalismo, liberdade, progresso, tolerância, fraternidade,
governo constitucional e separação Igreja-Estado) e com o liberalismo (eleições
democráticas, liberdade de expressão, direitos civis, liberdade de imprensa,
liberdade religiosa, comércio livre, igualdade de género, estado laico,
liberdade económica e propriedade privada).
Devemo-lo ainda aos
valores
humanistas e progressistas, à solidariedade e à fraternidade, mas também
ao individualismo, às vaidades, à ganância, à ambição e a
tantas outras virtudes e defeitos, porque é um erro valorizarmos as
virtudes e omitirmos
os defeitos. Aliás, foi com base (e em função) da ponderação entre as
virtudes
e os defeitos que decisões passadas foram tomadas, escolhas ancestrais
foram
feitas e, em última análise, o nosso percurso civilizacional tem sido
trilhado.
Na minha opinião,
existem valores que aparentemente estão a ficar esquecidos e que podem estar a
contribuir para uma verdadeira crise de valores que a nossa civilização
ocidental parece estar a atravessar. Cito, entre outros, os conceitos de ética
(conduta individual do ser humano) e de moral (costumes e regras de conduta em
sociedade), por um lado; e os conceitos de nacionalismo (preservação cultural,
acima de tudo, contra processos de destruição ou transformação identitária),
tradição (memórias, costumes, comportamentos, doutrinas e leis) e liberdade (ao
qual não podemos dissociar o conceito de responsabilidade), por outro lado.
Não vou dizer que
este valor é mais importante que aquele. Não é esse o meu objetivo, mesmo
quando comparamos os nossos valores com os de outras civilizações (sim, porque
as demais civilizações também têm os seus valores, que precisam ser
interpretados à luz da sua própria realidade). Mas também sei que não devemos
abdicar dos nossos valores, nem porque outros interesses se levantam (nomeadamente
económicos e políticos), nem porque os nossos valores morais nos dizem que
devemos ser condescendentes e tolerantes para com os demais.
Claro que devemos ser
tolerantes, mas temos de estabelecer limites para essa tolerância e,
principalmente, níveis de tolerância para os mesmos.
Mais do que analisar
as prováveis causas que nos levaram até aqui (já abordadas numa outra reflexão,
bastante mais extensa), pretendo partilhar algumas das reflexões que considero
mais pertinentes. Naturalmente que muitas ficaram por escrever, e desde já
lanço o desafio: vamos todos refletir e partilhar essas reflexões? Não serão
estas reflexões não apenas oportunas mas, verdadeiramente, essenciais para o
desenvolvimento do nosso próprio templo interior? Fica o desafio.
Passemos então às minhas
principais reflexões sobre esta temática.
Quero apenas deixar
uma nota inicial: vou centrar-me nas sociedades mais próximas (a Europeia em
geral e a Portuguesa em particular), que não são literalmente o espelho mais
fidedigno da civilização ocidental como um todo, mas também ainda não padecem
de alguns problemas existentes noutras sociedades ocidentais.
Para começar, devo
assumir que não me revejo numa sociedade que, movida pela ânsia de riqueza ou
pela necessidade de mão-de-obra, faz comércio com países que não respeitam
minimamente a condição humana. Mas também sei que, não fora esse mesmo comércio,
essas populações estariam num nível de pobreza e inumanidade ainda mais
dramático. Optamos então pelo mal menor? Talvez. É a melhor opção. Não sei.
Também não posso
compreender uma sociedade que se preocupa mais com questões relacionadas com
minorias (como a nossa recente situação das passadeiras coloridas) e encolhe os
ombros perante a fome e falta de proteção dos seus próprios habitantes. Claro
que todas as questões relacionadas com minorias são fundamentais e os seus
direitos têm de ser preservados, mas, dando como exemplo o nosso país, fará
sentido fazer disso uma prioridade (ou mesmo um assunto público) quando ainda
temos mais de ¼ da população portuguesa em risco de pobreza?
Quero com isto dizer
apenas que, não sendo possível alcançar todas as soluções em simultâneo, temos,
enquanto sociedade, de priorizar aquilo que é fundamental para todos, mantendo
a evolução nos demais temas. Sinto apenas que damos cada vez mais ênfase às
coisas pequenas, parecendo ignorar que existem ainda coisas grandes para
tratar.
Nova reflexão: “até onde estaremos dispostos a abdicar de
liberdades individuais para garantir a sobrevivência coletiva da nossa
sociedade? Qual será o limite e, acima de tudo, quem ou como será estabelecido
esse limite?”
Dou como exemplo a
questão da vigilância promovida em vários Estados. Poderemos mesmo viver sem
essa vigilância, mesmo sabendo que a mesma lesa liberdades individuais? E qual
é o limite: imagens filmadas nas ruas, conversas telefónicas interceptadas,
correspondência devassada, detenções ad-hoc?
Não me revejo numa
sociedade que, para fazer valer o seu modo de vida, tem de abdicar (ainda que
parcialmente) precisamente dos valores que criaram o seu modo de vida. Algo não
pode estar a ser bem feito.
Precisamos de
segurança imediata, sim, a curto prazo. Mas a médio prazo precisamos é de
deixar de ser vistos como inimigos por outras civilizações. Não estará na hora
de refletirmos melhor como alcançar esse resultado?
Importa efectuar uma
outra reflexão: “Devemos nós tentar impor
a nossa visão de mundo a outras civilizações?“
Independentemente da
resposta, entramos numa nova discussão, onde agora envolvemos também uma
espécie de nacionalismo comum e a necessidade (ou não) de preservação cultural
da nossa civilização, por um lado face à transformação identitária (ou mesmo
destruição) que o multiculturalismo e a imigração de outras civilizações têm
trazido para o ocidente e, por outro lado, face às potencialidades e às
mais-valias que a sociedade ocidental tem retirado desta mesma
multiculturalidade.
Foram precisos mais
de 300 anos de evolução para alcançarmos o estágio atual. Porque razão devemos
então impor a outras civilizações a aplicação, no imediato, de alterações
civilizacionais que, para nós, demoraram centenas de anos a consolidar (e,
nalguns casos, tudo aponta para ainda não estarem sequer devidamente
consolidados)?
Não seria preferível
incentivar e apoiar pequenos passos, dados de livre vontade, por forma a
garantir que as demais civilizações caminham num sentido positivo, de
aproximação ou aceitação dos nossos padrões e não no sentido do afastamento dos
mesmos? Não somos nós os garantes do livre arbítrio? Não nos consideramos os
baluartes da moralidade? Em que ficamos? São questões que merecem a nossa
reflexão.
Por último, deixo-vos
uma outra reflexão, bem atual nos nossos dias: “como lidar com os cidadãos de outras civilizações, particularmente
quando pretendem chegar à nossa civilização para se fixarem?”
Enquanto membro da
sociedade ocidental, nem sequer concebo outra atitude que não seja acolher e
apoiar quem nos ajuda. Aceito que sejam estabelecidas regras, critérios,
condições e requisitos, tal como aceito o custo económico-social que esta
atitude possa trazer.
Novamente, escolhas.
Algo que estamos tão habituados a fazer, de forma instintiva e natural, que nem
sequer já valorizamos. Algo que tantos milhões continuam a ser privados de o
fazer e parece que também nos esquecemos recorrentemente disso.
E não, a minha
escolha não é apenas uma escolha humanitária. O nosso modelo de sociedade
assenta numa economia que precisa de solidariedade intergeracional e cada vez
estamos mais envelhecidos. Não sejamos hipócritas: precisamos repovoar os
nossos territórios. Ainda podemos definir os termos e as condições. Senão,
seremos simplesmente invadidos, como aliás está a acontecer, porque as
ocupações militares não são a única forma de invasão.
Surge então nova
questão, que igualmente merece a nossa reflexão: “deve a nossa sociedade acomodar-se e moldar-se aos cidadãos de outras
civilizações que nos procuram para aqui se fixarem ou, em alternativa,
deveremos forçar estes cidadãos a moldarem-se à nossa sociedade? “
Considero que a nossa
sociedade deve salvaguardar os princípios mínimos de liberdade individual
destes cidadãos, assim como estes devem aceitar e interiorizar os nossos
valores de sociedade. Em bom rigor, se os nossos valores não forem aceites por
esses cidadãos, os mesmos não podem estar na nossa sociedade. É este o preço a
pagar. Em caso de choque insanável entre um valor ocidental e um valor de outra
civilização, o cidadão deverá conformar-se com o valor ocidental para poder
pertencer à nossa sociedade, no nosso território e usufruindo das nossas
condições. Noto apenas que aqui considero como choque insanável um conflito de
valores essenciais e indispensáveis para a convivência em comunidade que não
tenha qualquer forma de ser mitigado ou eliminado.
Claro que não quero
que estes cidadãos abdiquem dos seus valores só porque vieram para a sociedade
ocidental, mas entendo que temos de estabelecer determinados limites, que são
intransponíveis. Por exemplo, se a sua religião considera normal o tratamento
desigual entre géneros, esse cidadão tem de aceitar que, na sociedade
ocidental, esse tratamento é inadmissível e punido por lei. Logo, se optar por
ficar, tem de abdicar dessa prática, mesmo em nome de uma religião (o que,
aliás, acaba por acontecer naturalmente com o tempo).
Por outro lado,
também não deve a sociedade ocidental abdicar das suas funções de Estado,
garantindo a estes cidadãos o respeito pleno pelas suas crenças e convicções,
tal como o faz com a religião cristã (em particular a católica).
Podemos então
questionar: “porque obrigamos um cidadão oriundo
de outra civilização a qualquer tipo de compromisso, quando nem todos os
cidadãos ocidentais os cumprem?”
A resposta é simples:
não se faz um erro para corrigir outro erro. Aliás, a civilização ocidental
ainda não está completa e temos muito caminho a percorrer. Isso não pode servir
de desculpa ou argumento para abrir exceções ou atribuir menor relevância aos
nossos valores.
E então, onde vamos
parar? Quais são os nossos limites? Onde traçamos a fronteira para aquilo que
não aceitaremos?
São excelentes questões,
também merecedoras de uma reflexão própria. Ficará quiçá para uma próxima
oportunidade.
Naturalmente que os
temas onde necessitamos refletir não se esgotam neste que aqui abordei. Muito
pelo contrário.
Este é um pequeníssimo contributo para a reflexão global que
devemos fazer em sociedade, até porque, mesmo entre sociedades da civilização
ocidental, as diferenças sociais e culturais despoletam naturalmente pontos de
vista muitas vezes antagónicos, que têm de ser geridos e resolvidos a contendo
de todos os interessados, mas em respeito aos valores que nos são comuns.
Temos de refletir,
sim. Temos de tomar decisões refletidas, sem dúvida. Só espero é que a reflexão
não surja tarde demais.
Vasco Lopes
"porque dar milho aos pardais fará sempre alguém feliz"
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